4 de out. de 2011

PEDRA LAVRADA: NOSSO SEU "MADRUGA" VIRA ESTRELA DE CINEMA




DEPOIS DA MANZUÁ¹: UMA EXPERIÊNCIA DE ENSINO DE ARTE COMUNITÁRIA

                                                                                         Hamilton Freire Coelho -UFPB
Lívia Marques de Carvalho - UFPB

Resumo
O presente artigo descreve uma experiência de arte/educação realizada com moradores da comunidade de Pedra Lavrada, situada no sertão da Paraíba. O projeto teve como objetivo valorizar e revitalizar a cultura local. Recorremos ao uso das Artes Visuais, no caso a união de Artes Plásticas e Cinema, como forma de propiciar aos adultos e crianças uma oportunidade de refletirem sobre suas vivências e a construir o apreço e a valorização da cultura local.
Palavras – chaves: Cultura; Artes Visuais; Arte e Comunidade.


Resumen
El presente articulo describe una experiência de arte/educación realizada con convecinos de la comunidad de Pedra Lavrada, situado em el sertão de Paraíba. El proyecto tiene como objetivo valorar y revitalizar  la cultura local. Recurrimos al uso de las Artes Visuales, en el caso a la unión de Artes  plásticas y Cine, como forma de propiciar a los adultos y niños una oportunidad de  reflejar sobre sus vivencias y a  construir el aprecio y  la valoración de la cultura local.
Palabras - llaves: Cultura; Artes Visuales; Arte y Comunidad.

Em uma de nossas viagens, saindo de João Pessoa/PB em direção a uma praia em Baia Formosa, praia situada no litoral sul do estado do Rio Grande do Norte (nordeste do Brasil). Contemplando o nascer de um novo dia em busca de boas ondas para surfar, entre conversas de um artista plástico e um cineasta, sobre cultura e valor cultural de cada localidade, surge à idéia de se criar um projeto; que beneficiasse três comunidades em diferentes municípios e que unisse cinema e artes plásticas, em torno de valores culturais. A intenção era partir do resgate da memória de pessoas idosas  conhecidas em comunidades, mostrar e valorizar a cultura local, através de práticas artísticas e exibição de um filme (documentário) sobre cada comunidade.


Em uma conversa com um amigo de trabalho, o cineasta Omar Brito comenta sobre a ideia que surgiu naquela viagem e seu amigo relata que seria muito bom e gratificante se este projeto fosse executado em sua comunidade natal, localizado na cidade de Pedra Lavrada, no sertão da Paraíba. Neste depoimento, seu amigo relata que seu município sofre muito com os efeitos provocados pela seca e conseqüentemente torna a situação difícil na qual os mais novos refugiam-se em sonhos de ir embora para São Paulo, em busca de uma vida melhor e ainda poder ajudar a família que fica. 


Após esse relato, e amparado por alguém que viveu e conhece o ambiente; conclui-se que esse projeto ocorreria nesta comunidade, sendo a primeira das três comunidades planejadas. Após esta definição, o amigo do cineasta por intermédio de sua família entra em contato com a comunidade e fixa ao local onde será executado esse projeto, marcando, também, o dia da nossa chegada.




•  A viagem

Em fevereiro de 2010, saímos de João Pessoa em direção a cidade de Pedra Lavrada no sertão da Paraíba em busca dessa comunidade. A chegada foi de bom acolhimento, tanto por todos da comunidade como pelos familiares de nosso amigo que moram nessa localidade. Um churrasco previamente combinado proporcionou um entrosamento maior com os moradores, e, foi possível perceber que nosso amigo era visto com admiração por ser um sertanejo que se aventurou na capital e foi bem sucedido, entre muitos que tentaram e não conseguiram.     


Durante a recepção de chegada, conhecemos um senhor, relativamente idoso, super falante, simpático, muito conhecido e sempre sorridente, que se encaixou perfeitamente nas características que buscávamos para ser nosso narrador de memórias.
Foto: Hamilton Coelho
No dia seguinte começamos as filmagens, registrando imagens de toda região, fazeres e costumes, sempre acompanhado pelos olhares curiosos de crianças e adultos. Era visível a timidez, a satisfação e o orgulho do narrador em contar suas experiências de vida, e assistir estas serem registradas em um filme documentário. Durante toda filmagem, conversamos, refletimos e contextualizamos com sua esposa, filhos e pessoas da comunidade, sobre as histórias vivenciadas pelo narrador, porque ele é tão conhecido, e como ele tinha influenciado toda comunidade. 


•  O filme “Pedra”

Após árduos três meses editando, colocando trilha sonora, montando e remontando imagens em fim surge o documentário em curta metragem, com 54 minutos de duração; intitulado pelo seu autor Omar Brito de “Pedra”, nome referente á cidade Pedra Lavrada.  A conclusão do filme foi a 1ª etapa do projeto, agora planejamos a 2ª etapa, com aplicação de trabalhos em artes plásticas e a contextualização com a apresentação do filme, empregando os princípios da Proposta Triangular. 


Para que ocorresse esta segunda etapa, foi necessário obter materiais como: 30 lápis grafites 6b, borrachas, lápis de cor, lápis cera, fita adesiva, além papeis em vários formatos, com textura e sem, apontadores etc. Foram feitas algumas cópias do filme para ser distribuídas com os participantes Lembramos que todo esse material já existia e estavam sem utilização, pois foi um material de uma oficina ministrada anteriormente. Com todo esse material em mãos, nos restava marcar um dia para que pudéssemos executar a segunda etapa do projeto. 


Na segunda semana do mês de maio, pedimos a nosso amigo para avisar a comunidade que estaríamos chegando sexta feira para a tão esperada oficina de arte e apresentação do filme. 

Ao chegarmos á comunidade, tivemos a mesma recepção calorosa e festiva. Logo buscamos um ambiente amplo para execução dos trabalhos. Nesta busca bem sucedida, recebemos o convite para uma entrevista na rádio local e ao mesmo tempo convidar toda comunidade para participar dos trabalhos no dia seguinte (sábado); marcados em horário determinado e local conhecido pela comunidade. Esse local escolhido pela própria comunidade foi um restaurante/bar desativado, que a comunidade utiliza como área de eventos e festas. O horário foi traçado de acordo com o nosso tempo disponível naquela comunidade, que se restringiu ao final da tarde de sexta feira, e o sábado; pois nossa previsão era viajar de volta para João Pessoa no domingo pela manhã. 


Assim, estabelecemos os seguintes horários:
Artes Plásticas: Técnicas com grafite 6b, lápis de  cor e lápis cera: (15:00 as 17:00 hs);  
Exposição dos trabalhos produzidos: (17:00 as 18:00hs.); 
Apresentação do filme “Pedra”: (18:00 as 18:54hs.)


A aula de Artes Plásticas:

   Chegamos ao local determinado para aula meia hora antes do horário marcado. O espaço escolhido é coberto, amplo e arejado; contava inclusive com muitas mesas e cadeiras que ocupavam da entrada até o meio do espaço. O espaço restante ficou destinado para que os moradores dançassem. O ambiente nos agradou muito e deixava ver como eles  estavam empolgados com a experiência.

Nossa chegada foi todo tempo observada por vários olhares mesclados de timidez e curiosidade. Ao mesmo tempo, que podíamos observar a expressão de felicidade e ansiedade; transmitidos por crianças, jovens e adultos. Nesse espaço improvisado, já havia muitas pessoas que, ansiosas chegaram bem antes do horário marcado, e a maioria nos ajudou a  arrumar as mesas e cadeiras de forma a facilitasse o trabalho. 
Em contra partida, aproveitei para alargar minhas amizades, conhece-los melhor visando aplicar os princípios de Paulo Freire que se baseiam na“realidade do educando, levando em conta suas experiências, suas opiniões e sua história de vida; onde educador e educando devem caminhar juntos, dialogando, interagindo durante todo processo de aprendizado². Dava para sentir a alegria e curiosidade de muitos, embora quietos a espera da aula.

•  O “fazer Artístico”.

   Ao chegar o horário marcado do início da aula, todos que lá estavam já tinham escolhido e sentado em seus lugares com suas devidas companhias que estariam ao lado, pois se tratava de uma mesa com duas cadeiras. Devido ao espaço para se trabalhar, cada mesa com duas pessoas recebeu dois lápis grafites 6b, um apontador, duas borrachas, uma caixa de lápis de cor e outra de cera, e seis folhas grandes que serviriam para execução dos trabalhos artísticos; sendo que dessas seis folhas brancas de espessura grossa, quatro eram folhas lisas e duas texturadas.



 A aula começa em total silêncio com todos os olhares voltados ao professor e para algumas imagens de obras de arte que colei na parede da sala. A alegria estava estampada nos olhos daqueles que ali estavam, inclusive já com pose de artistas, com lápis na mão, á espera das orientações. Apresentei-me, em seguida fui me aproximando de cada mesa perguntando seus nomes. Na seqüencia falei o que era cultura e expliquei que cada região tem sua cultura, suas crenças e suas histórias próprias. Daí, questionei o que se produzia na região, perguntei se havia alguém conhecido na região, e o por que dessa pessoa ser tão conhecida, perguntei sobre histórias que eles conheciam da região etc.; a aula se tornou gradativamente uma festa de vozes falando e comentando.

Em seguida expliquei que tipo de folha eles deveriam utilizar para começar o primeiro trabalho com lápis 6b, além de orientá-los a utilizar aquele tipo de grafite; como utilizar traços fortes ou fracos, dar efeito da sombra etc., e pedi para que colocasse seus nomes em cada trabalho. Falei para eles que o tema dos trabalhos seria a cultura de Pedra Lavrada, em específico sua comunidade.

Orientei para que desenhasse algo que eles lembrassem, e que gostavam em sua comunidade; visando voltar o olhar para a cultura local, exatamente onde vivem e valorizá-la. Andei entre eles respondendo perguntas e questionamentos, e fiquei surpreendido com a forma de se expressar de alguns alunos; visto que grande parte daqueles que estavam presente, falaram que nunca tiveram tempo para parar e apenas desenhar.


Na sequencia, pegaram uma folha igual á anterior e oriente-os mais uma vez, a fazerem outro o segundo desenho com o lápis 6b e em seguida colorissem com lápis de cor; todavia, expliquei o que seria lápis de cor e lápis cera, pois alguns não sabiam. Entre conversas, brincadeiras, concentração e gargalhadas, e conclusões como: olha como o desenho colorido fica mais bonito; eu gosto sem cor. O que mais importava, era que a felicidade estava ali.

Naquele momento de observação tive uma sensação de  ver todos como crianças, devido á inocência e a alegria que pairava no ar.


A terceira etapa, e última se deu com as folhas texturadas, passando pela primeira etapa; ou seja, fariam o terceiro desenho com o grafite e iriam colorir com lápis cera. Na hora da explicação, o silêncio era total. Relembrei através de conversas sobre o tema que eles estavam trabalhando, e permiti-os a começar; embora alguns, anteciparam devido á vontade, ansiedade, e empenho de produzirem seus trabalhos. Naquele momento, em meio de conversas, sorrisos, comentários, o que se mais escutava era relatos sobre o lápis cera como: esse lápis parece com tinta, á cor fica mais viva que o lápis de cor, esse é melhor que o lápis de cor etc. Observei que a partir do conhecimento e principalmente o contato com novos materiais, tanto crianças como adultos passaram a questionar; ou seja, se tornaram mais críticos sobre o assunto, pois agora conhecem aqueles materiais.



•  “A apreciação”

Ao final do trabalho, mesmo passando alguns minutos do tempo estabelecido, colamos lado a lado todos os trabalhos expostos; ao mesmo tempo conversando sobre a cultura local em um ambiente em total sintonia, pois observei que não existia mais timidez de grande parte das pessoas.

Estavam relaxados e familiarizados com nossa presença. Reuni-os em frente de seus trabalhos e pedi para que escolham o que mais gostou para comentários. A fruição é bastante importante para aprendizagem, pois ela se refere á reflexão, conhecimento, emoção, sensação e ao prazer em buscar aquelas imagens já vistas e guardadas em sua memória, e construir sua própria imagem. Na presença da obra de cada autor,  comentamos sobre a composição de sua obra, percebendo o que ela propõe articulando aos recursos e materiais utilizados; ao mesmo tempo comparando com a obra de seus colegas, além de explicar que cada artista gosta de trabalhar com um tipo de material, como aqueles que eles usaram. Expliquei também, que havia outros materiais como tipos de tintas como: óleo, guache, acrílica e pincéis em várias tamanhos etc. O intuito era despertar o olhar para obras de arte para que possam desenvolver através da observação e fruição, a construção do sentido, análise e identificação e utilizem em seu cotidiano.


•  “A contextualização” 


Ao perceber, analisar, pensar e questionar sobre todos os conteúdos contidos nas imagens construídas e apresentadas; comparamos cada produção com a de seus colegas, mostrando que cada um tem uma forma de representar alguma coisa ou objeto. Por fim, comparamos com a produção de outros artistas que colamos na parede, com a intenção que  entendessem a quantidade da diversidade cultural existente no mundo e que cada cultura, inclusive a deles fazem parte deste contexto cultural existente no mundo.


Quando finalizamos os trabalhos com arte, falei para todos que depois da apresentação do filme, pegassem seus trabalhos e levassem para casa. Diante de perguntas como quando o senhor vem? Vai ter desenho quando? Finalizei falando que tinha adorado trabalhar com todos, que aprendi muito com eles e que todo o material utilizado, ficaria a disposição deles naquele local de festas da comunidade. Apresentação do filme “Pedra”:

Com o final do fazer artístico, observou-se muito mais gente e chegando mais para assistir o filme, pois muitos estavam trabalhando. Diante de muita conversa, perguntas; estávamos montando todo aparato para que fosse possível exibir o filme. 


Quando o filme começa, aquela algazarra foi suavemente baixando, até o total silêncio. As primeiras cenas do filme narradas por um morador local, relativamente idoso e muito conhecido, por suas histórias; além de ter sido o motorista da única ambulância da cidade de Pedra Lavrada. As pessoas pareciam que não acreditavam estar vendo aquela pessoa em um filme, daí muitos comentários, risadas, alegria geral. Aos poucos o silêncio vai voltando; embora surpresamente, alguém falava algo, ao meio do silêncio e começava uma série de gargalhadas a cada cena. Ao final do filme, observamos a alegria estampada no rosto das pessoas, sem falar de comentários como: “eita, agora Zé tá famoso, depois do filme” ou “agora todo mundo vai conhecer nossa comunidade”. 

Aos poucos as pessoas foram se dispersando e nós desmontando e embalando todo equipamento, para voltar a João Pessoa com a satisfação da boa elaboração e apresentação do “Projeto Depois da Manzuá”.

Considerações finais:

Quem diria que de uma viagem de lazer, terminasse em uma experiência rica e impar. E que todo esforço empregado na organização e idealização desse projeto, tivesse um retorno tão gratificante em ver a felicidade estampada em cada rosto; sobretudo, ter o prazer em transmitir nosso saber acadêmico em benefício de uma comunidade, através da arte e da troca de conhecimentos. O resultado dessa experiência teve um retorno quase que imediato, pois quando chegamos eram bem tímidos e desconheciam todo material apresentado e ao terminar os trabalhos, já estavam questionando sobre os mesmos com muita segurança. Portanto, credita-se que tivemos êxito, através da arte; no que diz respeito a tornar as pessoas críticas diante de situações cotidianas. Por fim, o “Projeto Depois da Manzuá” conquista seu objetivo principal, em contribuir para o desenvolvimento humano e pela valorização da cultura local; ao mesmo tempo nos dando subsídios necessários, inclusive segurança, para executarmos em mais duas comunidades em diferentes  municípios.
Acreditamos que tal como um manzuá, a reflexão sobre eles mesmos e sobre a cultura local tenham ficado aprisionadas em suas memórias.


Notas:
1 - Manzuá é um engradado de varas empregado na pesca, onde o peixe entra por uma abertura e não
encontra a saída.
2- FREIRE, Paulo. Ação cultural para liberdade e outros escritos.10ªedição. São Paulo. Paz e Terra.
2002. Pag. 24. 
Referências Bibliográficas:
BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. 4. Ed. São Paulo: Perspectiva,
2001.
CARVALHO, Lívia Marques. Ensino de Artes em ONGs. São Paulo: Editora Cortez,
2008.144 p.
FREIRE, Paulo.  Ação cultural para liberdade e outros escritos. 10ª edição. São
Paulo. Paz e Terra. 2002.
RIZZI, M. C. de S. Reflexões sobre a Abordagem Triangular do Ensino de Arte. In:
BARBOSA. A. M. (Org.) ensino da arte: memória e história. São Paulo: Perspectiva,
2008.
Hamilton Freire Coelho
Hamilton Freire Coelho é licenciado em Educação Artística pela UFPB e pós-graduado em Artes Visuais pelo EAD/SENAC/PB, é membro do Grupo de Pesquisa em Ensino das Artes Visuais da UFPB, e Mestrando em Ensino de Artes Visuais – UFPB/UFPE.
Lívia Marques Carvalho
Lívia Marques Carvalho é Doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Ciência  da Informação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Graduada em Educação Artística, Habilitação em Artes Plásticas (UFPB). Professora Adjunta do Departamento de Artes Visuais da UFPB. Pesquisadora sobre ensino de arte  em contextos formais e não formais.