Por Marcelo Torres
Depois da guerra, depois das mortes, depois do massacre, ou seja,depois de tudo, veio o doutor Euclides e cunhou a célebre frase “O sertanejo é antes de tudo um forte”. Oxente, seu doutor, não precisava tanto, bastava dizer que o sertanejo, antes de mais nada, é o cão chupando manga.
Seu Euclides, embora fosse crânio dos crânios - até porque era sociólogo, escritor, jornalista, engenheiro e professor -, na verdade quis fazer foi uma mediazinha com o sertanejo, talvez querendo se desculpar por ter ficado do lado mais forte daquela guerra estúpida.
Então, seu doutor, antes de tudo, o sertanejo é o cão de calçolão, é o istopô do Judas, é um fio do cabrunco da moléstia, é o raio da silibrina da gota serena.
E aí, caro leitor, complicou? Não entendeu?
O seguinte é este: aos olhos e ouvidos de quem não conhece as falas, os modos e costumes nordestinos, tais expressões podem soar como os piores desmerecimentos, desqualificações e xingamentos, quando, na verdade, são os mais puros, sinceros e naturais elogios dados e recebidos em nossas plagas nordestinas.
Simplifiquemos num só exemplo, numa só expressão: “O cão chupando manga”. Essa frase, no seu sentido original, expressa um baita elogio. É como se dissesse “Fulano é o diabo fazendo isso”.
- Ariano Suassuna é um escritor maravilhoso, não é?
- Afff Maria, é o cão chupando manga!
Depois que saiu das fronteiras da região e passou a ser usada a grosso modo por falantes ou escribas não nordestinos e, portanto, não contextualizados, essa expressão acabou, às vezes, ganhando outra conotação, contrária ao sentido original. De elogio rasgado passou a ter um tom jocoso, negativo.
Às vezes, o não-nordestino é levado a achar que esse cão que “chupa manga” é o cachorro (canis familiaris). Então, como a cena de um cão chupar manga é um tanto quanto insólita e esquisita, a expressão “o cão chupando manga” acabou sendo usada (fora do Nordeste) para se referir a algo ou alguém esquisito, estranho, feio, bizarro, pavoroso.
Na origem da expressão, porém, esse cão que chupa manga não é um cachorro. Esse cão que chupa manga é o demo, o tinhoso, satanás, belzebu, o diabo. É que nordestino chama cão de cachorro. E chama o diabo de cão. Ou seja, cão é eufemismo para não dizer o nome do tinhoso.
Na fala coloquial, nós nordestinos não costumamos elogiar nada nem ninguém de forma direta, aberta, objetiva, certinha. Que nada! Nós elogiamos é de forma indireta, subjetiva, informal, escrachada, esculhambada, xingada – e tome-lhe nome de doença, praga, palavrões.
Em Salvador, é um baita elogio o cara ser chamado de putão, miseravão - é aquele que se dá bem, principalmente com as mulheres. Em Sergipe, “fio do cabrunco” é o cara que é bom em tudo. É por aí...
Quando se diz que a cantora Claudinha Leitte “é bonita cumaporra” se quer dizer que ela é linda demais. Quando se diz que “Ivete é o cão para cantar”, se quer dizer que ela é o diabo para cantar, canta muito bem. “Ela no palco é o cão”, ou seja, ela no palco é o diabo.
Uma piada que se conta na Bahia é que, certa vez, um sergipano foi conhecer a Igreja do Bonfim, levado por um baiano. Quando lá chegaram, ainda do lado de fora, o sergipano ficou admirado com aquela obra de arte sacra e falou pro baiano: “Eita igreja bonita da desgraça!”. Aí o baiano emendou: “Quer ver o cão, entre”.
A expressão “o cão chupando manga” é absoluta e nordestinamente igual a “o cão de calçolão” (a vogal “o” tem som aberto = calçólão). Lembrando que, no Nordeste, calçola é o que os nossos compatriotas do Centro-Sul chamam de calcinha.
Então, que me perdoe o doutor Euclides da Cunha, esteja ele onde estiver, mas o sertanejo não é, antes de tudo, um forte. O sertanejo, aqui amplificado para o nordestino, é antes de tudo e depois de tudo o cão de calçolão. Ou o cão chupando manga.