22 de jan. de 2011

Poeta PICUIENSE Recupera a Cultura Matuta





Um sentimento nato. Assim Antonio Henriques Neto define a poesia em sua vida. E como tudo que nasce no sertão tem que romper a dureza de um chão castigado antes de frutificar, trajetória deste autentico poeta da terra não podia ser diferente: seu oficio literário começou na boleia de um caminhão, tomando na ponta do lápis as lições do gramático Alpheu Tersariol. Poeta e folclorista autodidata, Antonio Henriques Neto tem hoje três livros publicados: “Poesias dispersas” (1979). “Poesia, Folclore e Nordeste” (1985) e ‘Voz de um Homem Rude “(2001). Em seus poemas, muitos dos quais ainda inéditos, organizados em pastas que mantêm na biblioteca improvisada aos fundos de sua casa, a cultura do matuto é destrinchada por versos que registram o linguajar pitoresco desse povo e o amor por sua terra. Em uma conversa recheada de causos e anedotas, o poeta contou curiosidades de sua biografia e recuperou algumas das histórias que sobrevivem em sua memória sobre o nosso município.

Confira:


O titulo de seu ultimo livro é “voz de um homem rude”. Sendo um autodidata, como foi que o senhor construiu essa voz?


Eu sou originário da roça, filho de agricultores pobres que puderam me dar uma cultura mais elevada. No entanto, foram grandes pais: tirava de seus proventos resumidos um pouquinho de dinheiro para nos dar, a mim e a meus irmãos, as primeiras letras. E eu trabalhei com eles no amanho da agricultura, calejando a mão no cabo da enxada. Foi quando um tio meu ensinou-me a guiar um automóvel. Na época eu consegui a carteira nacional de habilitação e tornei-me caminhoneiro, profissão que exerci por 48 anos. Mas sempre tive o espírito voltado para o estudo. Como não podia estudar e precisava trabalhar para sobreviver, nunca faltou no porta luvas do caminhão uma gramática e um dicionariozinho de bolso para ler, sozinho, nas horas vagas. Aposentei-me aos sessenta e tantos anos quando, por capricho do destino, tive um problema cardíaco. Hoje sou portador de um marcapasso e não tenho mais condições de trabalhar. Minha professora foi e continua sendo uma gramática muito velha que eu tenho. De tanto manuseá-la, as páginas já estavam se arrancando e muitas lições estavam ilegíveis. Então eu mim dispus a copiar os melhores ensinamentos dela: passei seis meses nesta maquininha [mostra uma antiga máquina de escrever] copiando. Fiz 69 paginas com o que há de mais necessário ao nosso português. Toda semana eu releio duas ou três vezes e com isso arranjei um melhor conhecimento.

Mas desta máquina de escrever também saíram três livros de sua autoria e centenas de poemas ainda não publicados...


Sim, porque a poesia é um sentimento nato. Eu nasci com esse dom de escrever. Desde rapazinho eu fazia quadras, essas coisas... Muitas vezes viajando por este sertão afora, eu gostava de escrever sobre as coisas que mim sensibilizam. Eu via aquela seca terrível, parava o caminhão, e sempre tinha inspiração para falar sobre a seca do sertão. Só que eu sou muito tímido e não tinha coragem de editar um livro, porque achava que não tinha cultura. E agradeço muito a meu sobrinho Ronaldo Henriques, que foi quem mim encorajou. Ele dizia: “mas tio, o que foi que Zé da Luz escreveu? Patativa do Assaré? Não escreveram nesse gênero, o matuto? Isso também é cultura!”E ai eu criei coragem e escrevi o meu primeiro livro. Só que se, naquele tempo, eu tivesse o conhecimento que eu tenho hoje, o livro teria sido melhor. Ele tem muitas falhas. Falhas perdoáveis, mas falhas.


A que falhas o senhor se refere?


O que acontece é que, no meu gênero, quando a gente edita um livro, a gente sente raiva. Porque a poesia matuta, para estar certa, tem que estar errada: tem que se escrever da maneira que o homem simples pronuncia as palavras. Por exemplo: pouca gente sabe qual é o sinônimo de “comilão”, pessoa que come muito. Ai as mulheres daqui dizem: “ô menino isgulepado!”. Isso é de uma riqueza imensa, que não tem fim. Eu pesquiso muito isso. Sempre que vejo dois cidadãos mais velhos do que eu conversando, eu fico por ali sem que eles saibam que eu estou escutando. E colho muitas falas deles. Tenho um dicionariozinho de rimas e outro desse linguajar, que vem desde que o Brasil era uma colônia e caminha paralelo a cultura vigente. Nosso povo tem uma capacidade muito grande para criar neologismos, palavras novas. Agora só nós daqui é que compreendemos. Nos meus livros eu cometi esse erro: eu tinha que ter criado um apêndice com um glossário explicando isso.


O universo matuto é então a verdadeira fonte de seu trabalho?


Sim, a minha poesia é matuta. Eu adoro conversar com pessoas simples iguais a mim, escutá-las falar dos seus problemas com o linguajar, a espontaneidade e o raciocínio que lhes são peculiares. São pessoas desprovidas de cultura, mas que contribuem muito para o engrandecimento de nosso folclore. Minhas poesias são referentes a essas coisas do nordeste. Eu tenho muito material sobre nossa terra. E sobre outros assuntos também, porque a poesia abrange muitos assuntos. Ela é sentimental, é critica...


E Picui, qual a importância do município para sua obra?


Picui tinha personagens que não podiam ter morrido. Porque eles ficaram na história. Não só vão para a história de uma cidade as pessoas de projeção que fizeram algo por ela. O popular também entra para a história. Nós tínhamos o finado Aniceto Pereira, que era fantástico, gozado. Outro era Martin Doido. Martin foi um doido da região que imortalizou seu nome pela brutalidade, pela ignorância. Ele tinha horror ao Juiz Manoel Casado, que ele chamava de “Mané Véio”. Uma vez ele disse um palavrão a uma criança. O juiz viu a cena, chamou o soldado e mandou prendê-lo. Isso foi numa segunda feira. Na quinta feira o juiz manda o delegado solta-lo. Na saída da cadeia, Martin que usava uma bonhazinha sem pala, tirou o chapéu, ajoelhou se e perguntou ao delegado: ”eu posso jogar uma praga aqui no terreiro da cadeia?” o delegado deixou. Ele pôs as mãos para cima e disse: “Eu tenho fé em deus, Maria Santíssima, nas onze mil virgens, em tudo quanto é mais sagrado, que ainda vou ver Mané Véio com uma dor de dente de torar, uma dor de barriga dessas que não passam mais nunca, perdido na Amazônia, em riba de um pé de pau, com uma onça miando debaixo”. [risos.] Outro era Aguineto, que todo ano fazia o aniversário dele e convidava as pessoas de que ele gostava. E tinha aqui um pessoal do exército, o tenente Lousada, a esposa dele, uma senhora muito educada, que foram convidados para os comes e bebes da festa. Na hora em que estavam todos reunidos, Aguineto chama sua mulher: “minha filha traga aí um copo!”. A esposa do tenente, admirada, disse: “Seu Aguineto, meus parabéns, o senhor nessa idade tratar a esposa tão amorosamente...”. O velho diz: “Não, é que eu sempre esqueço o nome dessa cachorra da moléstia”. [Mais risos].

Então seu Antonio Henriques Neto escreveu:



Linguagem Cabocla

I

Vosmicê seu jornalista
Qué fazê uma reportage,
E me pede entrevista
Prá gravá nossa linguage.
Se deseja me iscutá
Travez vá ignorá
O meu linguajá grosseiro.
Mas mode lhe satisfazê,
Posso inté lhe fornecê
Um resumido roteiro.

II

Nossa linguage cabôca
Pra quem tem inducação,
Travez seja um bate boca
De difice compreensão.
Mas já que fui isculhido,
Vou fazê o seu pedido
Com meu fraco purtuguês.
Se é o falá da gente,
Veja Cuma é diferente
Da língua de vosmicês:
Aqui um cabra cumedor
se chama isgulepado,
um ôio d’água é chorado
e doido, abestaiado.
Gente boba é arigó,
Um armário é caritó
E grota funda, suvacão.
Bufete é quebra-queixo,
Rebolado, remelecho
E muierengo, gavião.
( ... )

III

- Prutanto, seu jornalista,
É essa nossa linguage.
Que travez seja má vista
Pru quem tem boa letrage.
É uma língua falada,
Pru quem nasce nas quebradas
Das cordilheiras do sertão.
Que sem curtura padece,
E de quem sabe, merece,
Uma ismola do perdão.


Matéria transcrita da Revista Conheça Picuí, Capital Mundial da Carne de Sol, Editada Pela Prefeitura Municipal de Picuí.
Governo Municipal “Picui é do Povo”.

Nossa homenagem ao amigo e grande poeta Picuiense Antonio Henriques Neto.