Época: Um caso de tradução com Dostoiévski
Luís Antônio Giron para a revista Época Ed. 697 23/09/2011
Paulo de Badé Após entrevista no Programa A Sua Verdade - março 2010 |
Paulo Bezerra admira tanto Fiódor Dostoiévski (1821-1881) que visitou a cidade natal do escritor, São Petersburgo, munido de um guia turístico nada convencional: Crime e castigo, seu romance mais famoso. “Explorei a cidade, percorrendo os lugares por onde passou Raskolnikov (o estudante assassino, protagonista do livro)”, diz Bezerra. “Mas não teve nada de macabro. Foi um passeio fantástico.” Corria o ano de 1967. O paraibano Bezerra, então com 27 anos, estudava russo havia quatro na Universidade Lomonóssov, em Moscou. Ali começou o envolvimento de Bezerra com os autores russos. Em 1971, voltou ao Brasil, deu aulas e passou a traduzir filósofos e historiadores soviéticos. Em 1977, saiu sua primeira tradução literária: o romance O herói do nosso tempo, de Mikhail Liérmontov. Verteu os poemas de Osip Mandelstam, as novelas de Nikolai Gógol e o romance Os filhos da Rua Arbat, de Anatol Ribakov, entre outros.
Foto: Stefano Martini/ÉPOCA e Álbum/akg-images |
Seu caso de tradução com Dostoiévski se consumou mais tarde. Em 2001, recebeu muitas negativas até conseguir vender a uma editora o projeto de traduzir do russo os grandes romances de Dostoiévski. Ele assinou um contrato com a editora 34, garantindo para si os direitos integrais de autor, um feito raro até então. Com isso passou a ganhar um porcentual sobre a venda do livro. Isso lhe deu independência econômica. A conquista de Bezerra marcou o início da revolução no campo da tradução no Brasil. Desde então, o público brasileiro pode ler as principais obras da literatura russa em traduções diretas e confiáveis.
O primeiro lançamento de Bezerra para a 34 foi a tradução de seu velho conhecido Crime e castigo. O romance, publicado em folhetins de revista em 1866, saiu no Brasil em sua primeira tradução direta no final de 2001. Desde então, a tradução já vendeu mais de 100 mil exemplares. Aos 71 anos, Bezerra está aposentado da Universidade Federal Fluminense. Mora com a mulher no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Tem duas filhas e três netos. Gosta de trabalhar em sua biblioteca. O sucesso do projeto lhe deu sossego para traduzir três outros romances canônicos do autor: O idiota, Os demônios e Os irmãos Karamázovi. Acaba de chegar às livrarias a novela O duplo (editora 34, 240 páginas, R$ 39), o segundo livro da carreira de Dostoiévski, publicado em 1846 – e jamais, ao que se saiba, traduzido diretamente para o português.
“Todas essas traduções venderam”, diz Bezerra. “Antes de propor o projeto, pesquisei para saber qual é o autor russo mais vendável no Brasil. Descobri que era Dostoiévski.” O livro O duplo já está sendo devorado pelos leitores em poucos dias de lançamento, segundo ele. “Os brasileiros adoram dois autores russos: Anton Tchékhov e Dostoiévski”, afirma. “Não sei por que ignoram Púchkin e Gógol, o que não ocorre em outros países. Talvez seja por causa da leveza e do humor de Tchékhov e do mergulho de Dostoiévski na alma russa.” A intensidade de Dostoiévski, diz, atrai os jovens. “Prova disso é que estão saindo dezenas de dissertações sobre ele pelo Brasil.”
É firme a relação entre os leitores brasileiros e a obra de Dostoiévski. Ela circula por aqui desde o século XIX, em traduções do francês e do inglês. Em meados dos anos 1940, o jovem tradutor Boris Schnaiderman, imigrante russo, começou a traduzir os romances do escritor para a editora Vecchi de São Paulo. A primeira tradução foi para Os irmãos Karamázovi, de acordo com ele “um desastre completo”, “para ganhar dinheiro”. Tanto que a assinou sob pseudônimo e a rejeitou. “Ainda não estava preparado para o desafio”, diz Boris, de 93 anos. Ele aprofundou-se no estudo. Fundou o Departamento de Russo na Universidade de São Paulo, em 1959. Consagrou-se como tradutor e formou a maior parte dos tradutores do russo hoje atuantes.
Bezerra segue o que considera a maior lição de Boris: encarar o desafio de lidar com textos de tradições diferentes. “O papel do tradutor é mediar autor e público”, afirma. “O tradutor indireto é apenas um mediador entre o autor e o tradutor de uma terceira língua. O tradutor precisa sentir as nuances da fala e ouvir a alma da cultura que ele verte.”
Imbuído da tarefa, ele pretende dar cabo da obra de Dostoiévski. “Poderia ter escolhido Tolstói, mas Dostoiévski chega para encher uma vida. É o maior de todos os romancistas”, diz. Trabalha agora com o último grande romance do autor que lhe resta: O Adolescente, a sair em agosto de 2012. Levou um ano para traduzir O duplo. Embora seja considerada uma obra menor, goza do apreço do tradutor. “É o laboratório de linguagem dos romances posteriores de Dostoiévski”, afirma. “Elabora ali sua técnica narrativa, baseada na polifonia e na exploração psicológica.” Segundo ele, a única tradução do livro para o português foi feita do inglês pelos portugueses Natália Nunes e Oscar Mendes. “Eles desfiguraram a história.” É preciso maturidade para lidar com suas dificuldades. As falas de cada personagem têm um vocabulário, o narrador se mostra instável, não raro se fundindo com o personagem, e os monólogos tocam o absurdo. Por isso, Bezerra adiou sua versão até se familiarizar com o método de Dostoiévski.
A crítica do tempo achou excêntrico O duplo. Narra as desventuras do submisso funcionário público Golyádkin, que, em meio à busca de reconhecimento dos chefes, encontra uma cópia sua, só que melhorada. Enquanto tenta lidar com um sósia que o supera, os conflitos de Golyádkin com o mundo exterior se tornam insuportáveis – e tudo vem à tona, num turbilhão de contradições. Bezerra encontrou o maior obstáculo no décimo capítulo. Nele se defrontam o herói, seu duplo e a terceira pessoa do narrador, pela supremacia da história. “São passagens que beiram o intraduzível”, diz. “As vozes se confundem, a poesia duela com a prosa e o delírio devora a realidade. Tentei transportar esse desconcerto para nossa língua.” Em O duplo, Bezerra fez uma inédita transfusão do sangue e da loucura russos para o português. Momentos assim fazem do tradutor um herói.
REVISTA ÉPOCA - EDITORA GLOBO