Raian de Sousa Rosa, 24 anos, Sheila de Azevedo, 32, e Ademir de Melo, 34, têm algo em comum: sofrem de transtornos mentais. Eles fazem parte de 2% da população que em algum momento da vida passam por uma crise de problema mental. Raian tem esquizofrenia, segundo ele, desde os 14 anos. Sheila é bipolar e Ademir “via” pessoas o seguindo devido à esquizofrenia.
Os três dizem que os problemas surgiram em decorrência da morte dos pais. Segundo o psiquiatra Marcelo José Fontes Dias, o transtorno existe antes da crise, um acontecimento fora da rotina transparece a fragilidade e a dificuldade que cada pessoa tem para lidar com o “problema”. De acordo com o psicanalista, o primeiro surto ocorre entre os 15 e 30 anos. Antes, as pessoas têm uma vida estabilizada. “É o caso de um adolescente que é calado demais, por exemplo”, explica. “Quem tem algum transtorno, em algum momento da vida uma situação irá desencadear a crise”.
O médico esclarece que a humanidade é dividida em três estruturas mentais definidas nos primeiros anos de vida. A considerada “normal” é a neurótica, na qual a maioria das pessoas se enquadra. Nesse caso, há problemas menores, que podem ser facilmente controlados, como histeria e fobias. “Todo mundo tem um pouco de transtorno, como o perfeccionismo. A pessoa passa a precisar de ajuda apenas quando a mania chega ao ponto de atrapalhar a vida social ou profissional”, afirma o psiquiatra.
A segunda estrutura forma os psicóticos. Esse grupo possui transtornos como esquizofrenia, paranoia e bipolaridade, que precisam de tratamento para que haja convívio social. “O psicótico não entende o estilo de vida dos neuróticos. Por isso as crises acontecem quando há uma nova etapa na vida, seja entrar na escola, namorar, trabalhar ou perder alguém”, conta Dias. Os psicóticos não chegam a 10% da população. Já a terceira estrutura é a dos perversos, em que estão inseridos os psicopatas e outras pessoas que apresentam ameaça à sociedade.
A depressão é o transtorno mental mais comum. Um mal totalmente ligado ao estilo de vida atual, segundo o psicanalista, em que há muita cobrança para atingir resultados. A maioria dos casos não apresenta necessidade de tratamento intensivo. Porém, os mais graves podem gerar tentativa de suicídio e delírios, o que precisa ser cuidado com medicação ou internação.
Um lugar para aprender a conviver
Se Raian, Sheila e Ademir vivessem há algumas décadas, certamente seriam levados para um lugar conhecido como manicômio. Mas um modelo de atendimento proposto na Itália começou a ser construído e adaptado no Brasil, em 1986, substituiu os hospícios e seus métodos para cuidar de doenças psiquiátricas. O Caps (Centro de Atenção Psicossocial) foi instituído em 1992 e consiste num local que oferece cuidados a pacientes em sofrimento psíquico. Trata-se de uma unidade de saúde especializada no cuidado intensivo, comunitário, personalizado e busca promover a qualidade de vida para os que sofrem com transtornos mentais graves e persistentes.
Jaraguá do Sul se enquadra no grupo de cidades que possuem entre 70 e 200 mil habitantes. Por isso, tem há cinco anos uma unidade classificada como Caps II. De acordo com a subgerente Denise Thum, o Caps foi criado quando começou a ser discutida a saúde mental. “Precisava de um olhar especial”, afirma. A instituição dos Caps ocorreu com a reforma psiquiátrica, determinada pela Política Nacional de Saúde Mental.
O Caps II de Jaraguá dom Sul recebe 295 pessoas, uma média de 40 por dia. Eles sofrem, principalmente, de esquizofrenia, transtorno bipolar, depressão grave e alguns tentaram tirar a própria vida.
O atendimento à pessoas com transtorno mentais começa nas unidades básicas de saúde, onde os usuários são avaliados e encaminhados ao Caps pelos médicos especialistas do SUS. Um profissional faz uma entrevista para saber a história da pessoa, grau de comprometimento, medicações em uso e situação familiar. As informações são usadas para a montagem de um plano terapêutico individual, que pode ser classificado em três categorias: intensivo, semi-intensivo e não intensivo.
O intensivo é aplicado todos os dias aos com grave sofrimento psíquico, em situação de crise ou dificuldades no convívio social e família. O semi-intensivo, no qual o usuário pode ser atendido até doze dias no mês, é oferecido quando o sofrimento e a desestruturação psíquica da pessoa diminuíram, melhorando as possibilidades de relacionamento. E o não intensivo é oferecido quando a pessoa não precisa de suporte da equipe para realizar atividades na família e no trabalho, podendo ser atendido até três dias no mês.
As atividades realizadas no Caps são: ateliê de criação, auto-cuidado, artesanato, pintura, grupo de luto, consulta de enfermagem, jogos de mesa, argila, culinária, mural de notícias, psicoeducação, corpo em movimento, cidadania, relaxamento, atividade livre, intervenção em crise, grupo de convivência, atividades da vida diária, geração de renda, recreação, memória, ideias em pano. Os participantes também ganham café da manhã, almoço e lanche da tarde.
O Caps de Jaraguá se mantém com um repasse mensal de R$ 32 mil do Ministério da Saúde.
Outros tipos de serviços
Além do Caps II, Jaraguá do Sul conta com o Caps AD, que atende adolescentes e adultos em sofrimento psíquico decorrente de uso ou abuso de álcool e outras drogas. São aceitos casos mais graves, com padrão de dependência ou comprometimento sócio-familiar. Esse grupo corresponde a 12% da população, segundo a OMS.
Os encaminhamentos também são feitos das unidades de saúde e de secretarias municipais, como Assistência Social, da Criança e do Adolescente e Educação e instituições como Ministério Público, juizados e Conselho Tutelar.
O Caps AD existe há dois anos em Jaraguá e trata 80 pessoas, a maioria é dependente de álcool. A unidade tem um repasse de R$ 42 mil mensais. As principais atividades envolvem grupo terapêutico, oficina, orientação familiar, visita domiciliar, matriciamento, desintoxicação ambulatorial e encaminhamento para desintoxicação em hospital geral.
A proposta do Caps AD tem uma proposta diferente de uma clínica de reabilitação.
Segundo a assistente social da unidade, Vera Lucia Caon, o foco não é a abstinência, mas a qualidade de vida. "Nosso intuito é romper com a visão moralista que condena essas pessoas, dizendo que são fracas e sem caráter", explica.
Crianças e adolescentes
Outro lugar que atende pessoas com transtornos mentais é o Ambulatório de Saúde Mental Infanto-Juvenil. É unidade da secretaria de Saúde de Jaraguá do Sul que presta serviços a crianças e adolescentes até 18 anos. São usuários com problemas em saúde mental que comprometam a própria saúde, atividades de estudos e outros tipos de relações sociais.
Os atendidos passam por um processo de avaliação para saber o problema e se necessita de intervenção por meio de psicoterapia, orientação ou encaminhamento a outro serviço de saúde. Os pais também são entrevistados para apresentar informações aos cuidados do usuário.
Segundo psicóloga Maria Natália Machado, os transtornos podem ser detectados desde os três anos. “A criança apresenta sintomas como fala desconexa e delírio e a mãe tem dificuldade para estabelecer um limite”, conta. Os pais devem procurar a ajuda quando notam comportamento estranho na criança.
Um novo olhar sobre os transtornos
Raian, Sheila e Ademir frequentam o Caps II de Jaraguá. Segundo eles, melhoraram bastante após participarem das atividades realizadas no Centro. “É importante a família e a sociedade entender como conviver com os transtornos sem isolar as pessoas”, diz Denise. O Caps trabalha com as potencialidades de cada usuário, explorando o que é possível para cada um desenvolver. "A pessoas têm medo. É preciso haver uma aproximação para desmistificar os problemas mentais" explica a terapeuta ocupacional Ana Célia de Oliveira.
A maioria dos atendidos tem consciência da própria condição. “Alguns até ligam avisando que estão prestes a ter um surto e precisam de ajuda”, conta Denise. Ademir foi um dos que procurou auxílio. Ele não conseguia trabalhar direito e via pessoas o seguindo. “Meu ex-chefe é que me ajudou a procurar tratamento”, diz. Tanto Ademir quando Raian e Sheila desenvolveram amizades dentro do Caps e consideram as atividades desenvolvidas no Centro fundamentais para a saúde mental.
O sistema de tratamento usado no Caps é um “intermédio entre a vida na comunidade e a psiquiatria”, explica a terapeuta ocupacional Carolina Santana Mafra. Somente são encaminhados para internação quando há crise aguda. Internações que, segundo a psicóloga Camila Pappiani, não passam de um mês.
Não há ala psiquiátrica em Jaraguá do Sul. Quando necessário, os pacientes são levados para o Hospital Regional Hans Dieter Schmidt, em Joinville.
Treinamento aos outros profissionais de saúde
Uma das atividades realizadas pelos funcionários dos Caps é o matriciamento. Segundo a assistente social Sibeli Cristina Reichow, trata-se de uma troca de informações com profissionais que fazem o primeiro atendimento nas unidades de saúde.
Os servidores recebem há dois anos suporte e treinamento mensais. Cada mês uma unidade recebe a equipe do Caps. “É importante saber como lidar com os transtornos desde o primeiro contato. Muitas pessoas ainda são encaminhadas de maneira errada para o Caps”, explica Sibeli.
Jaraguá do Sul conta com uma equipe de 31 profissionais entre artesão, assistente social, enfermeiro, médico psiquiatra, motorista, psicólogo, recepcionista, servente, terapeuta ocupacional e vigilante nos Caps II, AD e Ambulatório.
Uma data para lembrar
Esta segunda-feira é o Dia da Saúde Mental, estabelecido pela OMS (Organização Mundial de Saúde). O propósito é mudar a forma da sociedade de ver as pessoas com transtornos mentais e promover uma ampla discussão sobre as desordens.
Os três serviços da Saúde Mental de Jaraguá do Sul organizaram na semana passada exposições artísticas e debates sobre o tema. Nesta segunda, das 9 às 16h, haverá exposição dos trabalhos artísticos produzidos pelos usuários dos Caps na Praça Ângelo Piazera. Serão realizadas oficinas artísticas, que normalmente são oferecidas dentro das estruturas.
Correio do Povo