2 de ago. de 2011

"Ainda temos uma Justiça machista", diz Maria da Penha sobre lei no País

Imagem de 2006 mostra Maria da Penha ao lado da ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal, e do ex-presidente Lula
Maria da Penha Maia Fernandes tem 71 anos, boa parte deles dedicados à punição de um homem. Do ex-marido, com quem viveu por sete anos e teve três filhos, ela evita até o nome. Chama apenas de "meu agressor".

Uma das maiores personagens da luta pelos direitos da mulher, Maria da Penha dá nome à lei que protege contra a violência doméstica e que, domingo (7), completará cinco anos em vigor.

Em entrevista a Terra Magazine, ela hoje olha com orgulho aqueles anos. Ainda assim, vê mulheres enfrentando as mesmas dificuldades que ela, em 1983. A Justiça, diz, ainda tem muito a percorrer para dar segurança de verdade às mulheres.

"Quem não conhece a Justiça, pensa que o Poder Judiciário é justo". Simples assim. E reclama de autoridades que, pelo Brasil, ainda cedem a "uma cultura machista".

- A conduta de juízes e desembargadores está ligada à cultura. Eles se criaram e se educaram numa cultura machista. O homem pode tudo e a mulher não pode nada. Ainda hoje é assim, mas isso tem que ser mudado.

Sancionada em 2006, a Lei nº11.340 dá uma série de garantias. Diz, por exemplo, que cabe ao poder público permitir que a mulher não tenha mais que morar com o agressor. Há exatos 28 anos, quando o então marido - o engenheiro Marco Antonio Heredia Viveros, natural da Colômbia - tentou matá-la, Maria da Penha teve que voltar a viver com ele depois de ser tratada no hospital. Foi agredida novamente. "Fiquei em cárcere privado", conta. Da primeira vez, recebeu tiros enquanto dormia e ficou paraplégica. Foi quando o ex tentou eletrocutá-la empurrando a cadeira de rodas para o chuveiro.

Hoje, diz, a história se repete:
- A mulher tem vontade de sair daquela vida de violência. Muitas vezes ela tem a informação, mas não tem onde denunciar no seu município.

Pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com dados de 2009 mostra que apenas 559 municípios brasileiros possuem os chamados Centros de Referência para mulheres em situação de violência. Isso representa apenas 10% do total de cidades brasileiras. Estes centros oferecem assistência psicológica e atendimento jurídico para vítimas de violência doméstica.

- O que a gente percebe é que apenas nas grandes cidades, com algumas exceções, claro, é que a lei está implementada. Ainda falta muito - opina Maria da Penha.
Leia a entrevista.

Terra Magazine - Algum dia você imaginou que daria tanto seu tempo a uma causa social como a da violência contra a mulher?
Esse resultado foi fruto de muita luta pra questão de punir meu agressor. Ele continuava utilizando recursos, até mesmo fora do prazo, que contribuíram para a quase prescrição do crime. Ele só foi preso por conta da pressão internacional. Faltando três anos para o crime prescrever, eu tive contato com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos). Houve uma decisão contrária ao Brasil e só assim mudaram as leis do país.

O que aconteceu naquele dia, em 1983?
Eu estava dormindo, acordei com um tiro. Não vi quem atirou. Mas depois foi descoberto que ele tinha sido o autor dessa tentativa de homicídio. O julgamento demorou oito anos. Ele foi condenado, mas saiu da prisão por conta de recursos. O segundo julgamento demorou mais quatro anos. Novamente, condenado. Foi nesse intervalo entre um julgamento e outro que eu fui atrás pra provar que não fazia sentido uma pessoa que cometeu um crime como esse estar em liberdade.

Com o tempo, é possível imaginar que você tenha ganhado forças pra lutar contra isso. Mas, naquele primeiro momento...
Eu não criei forças pra lutar. Não existia nada que favorecesse a mulher. Pra se ter uma ideia, só em 1985 foi criada a primeira Delegacia da Mulher. Não existia essa visibilidade. Não existia um aparato legal. Se você quisesse sair de casa, perdia até o direito de voltar.

E como conseguiu a separação definitiva?
Depois de quase assassinada, fiquei quatro meses no hospital e, quando saí, fiquei em cárcere privado. Só então eu pedi a separação de corpos e consegui sair da companhia dele. Voltei a morar com meus pais. O comportamento dele (ex-marido) mudou depois que ele conseguiu ser naturalizado brasileiro. Para ser naturalizado, ele contou com o casamento e os filhos. No momento em que ele conseguiu, mudou a maneira de ser.

De 1983 pra 2006, quando foi criada a lei, são muitos anos. O que te fez insistir?
Eu me sentia muito mal. Não sabia como responder para meus amigos e familiares. Quem não conhece a Justiça, pensa que o Poder Judiciário é justo. Mas existem juízes e juízes. Desembargadores e desembargadores. A conduta deles está muito ligada à cultura. Eles se criaram e se educaram numa cultura machista. O homem pode tudo e a mulher não pode nada. Ainda hoje é assim, mas isso tem que ser mudado.

Nunca mais casou depois?
E você acha que dá tempo? (Risos). A causa é muito abrangente.

Isso não te faz sentir arrependimento?
Não, porque eu acho que isso é uma coisa muito importante. Quando eu comecei a tomar conhecimento do que é a violência de gênero, vi que era uma coisa aberrante. Nossos descendentes precisam ter um futuro com a garantia da não-violência.

Você ainda encontra, hoje em dia, muitas mulheres que te procuram, que vêm te cumprimentar?
Em todo lugar onde eu vou. Sempre tem alguém querendo contar alguma coisa. Isso é muito importante, saber que você está ajudando.

Cinco anos depois, muita coisa mudou?
O que a gente percebe é que apenas nas grandes cidades - com algumas exceções, claro - é que a lei está implementada. Ainda falta muito. As cidades pequenas ainda não têm estrutura de atendimento.

A história ainda se repete?
Claro. A mulher tem vontade de sair daquela vida de violência. Muitas vezes ela tem a informação, mas não tem onde denunciar no seu município.

Você tem três netos, ainda crianças. O que diria para as duas meninas se tivesse que deixar uma mensagem pra elas agora?
Que elas não permitam que nenhum homem as maltrate.

TERRA